A "orientação e mobilidade" é, certamente, o componente mais importante no processo de reabilitação e integração do deficiente visual. A imagem de um indivíduo movimentando-se nas ruas, atravessando-as, passando entre os carros, entrando nos transportes públicos, desviando-se dos obstáculos com destreza usando apenas uma bengala branca, é comum nos dias que correm. Esta capacidade de mobilidade e de orientação é conseguida recorrendo a uma aprendizagem muito específica que tem como objectivo fazer com que o cego use todos os seus outros sentidos de uma forma coordenada e constante que o levam a saber onde está, por onde deve ir e como reconhecer os vários locais. Além de aprender a usar convenientemente a audição, o olfacto, o tacto, etc., o cego também aprende a criar pontos de referência que o ajudam a identificar determinados locais. Um sinal de trânsito, um declive, mudança de piso, saliência numa parede, podem ajudar um cego a identificar um determinado local. Ouvir de que lado vêm os carros ou sentir de onde vem o vento, pode ajudar um cego a saber se está junto a uma rua e se pode atravessá-la. Um cheiro a bolos ou a café pode ajudá-lo a identificar uma confeitaria. Aprendem-se também técnicas que permitem alguma segurança na mobilidade de forma a prevenir alguns incómodos ou até mesmo acidentes. O ser humano, através da visão, tem a possibilidade de identificar objetos, além de distinguir cores, formas, tamanhos e distâncias. Para Hall (1986: 133), a distância faz parte de um dos sistemas de coordenadas na relação de nosso corpo com outros corpos e objetos.
A visão se apresenta como um sentido de grande importância na captação de estímulos e projeções espaciais, facilitando o relacionamento do homem na sociedade. De acordo com Hall, a percepção de um cego atinge um raio de seis a trinta metros, enquanto as pessoas com visão poderiam atingir as estrelas. Além disso, na maioria das vezes, os cegos têm comprometidas as suas relações pessoais, através da exclusão social, pois fogem do padrão de normalidade estabelecido. Segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1993, 10% da população brasileira é portadora de deficiência, sendo 0,5% portadores de deficiência visual, num total aproximado de 700 mil cidadãos.
Vários segmentos da sociedade, a exemplo dos idosos, crianças e deficientes e, no caso específico deste estudo, os cegos congênitos, estão à margem da sociedade. Segundo Lemos (1981), estes cegos, cuja perda de visão ocorre a partir do nascimento até cerca de cinco anos de idade, ocupam um espaço marginal por não apresentarem produção como as pessoas ditas normais. Para Glat (1995), o “isolamento social dessas pessoas ainda persiste”, e elas poderiam estar ocupando espaços considerados dignos em nossa sociedade, ou seja, o espaço social, que para Bourdieu (1990) funciona como um “espaço de estilos de vida”, onde deve ser valorizada cada ação individual.
O corpo é um espaço; quando valorizamos a ação individual estamos respeitando o espaço corporal. A construção espacial é simbólica, e é no corpo que sua noção é registrada. Por isso ele é o espaço fundador, referências dentro e fora, sair e entrar, engolir e expelir, projetar e incorporar. De acordo com Merleau-Ponty (1994: 328), “o espaço não é o ambiente (real ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível”. E tudo isso é apreendido pelo corpo. Nesse sentido, o corpo constrói uma relação consigo mesmo, através da imagem corporal elaborada em sua apreensão de mundo. Para Vayer (1985: 93),
“a consciência de si mesmo ou experiência de si mesmo é evidentemente o conjunto de retroações originadas das interações indivíduo-mundo, mais precisamente sua interpretação e memorização pelo sistema nervoso sob a forma de conjuntos estruturados de informação e de programas.”
Vayer (1985: 96) nos alerta para a grande diversidade terminológica decorrente dos modelos culturais, que nos levam a utilizar termos diferentes: imagem do corpo; imagens motoras; esquema postural; esquema de atitude, esquema corporal. Segundo o mesmo autor, são os distúrbios ou as dificuldades da existência que nos fazem perceber a estrutura corporal, porque a construção mental do esquema corporal é ligada à história de vida de cada indivíduo, respeitando as influências culturais e individuais. As pessoas cegas, assim como as videntes, não constróem sozinhas o esquema corporal. No jovem cego congênito, além da necessidade do toque corporal, há também a necessidade de diálogo verbal com os pais, sobre o esquema corporal e a imagem do seu corpo. Contudo, conforme Telford & Sawrey (1988), se este diálogo verbal não for bem esclarecido, devido à perda de elementos da comunicação não-verbal (posturas, gestos e expressões faciais), a imagem do corpo do cego congênito poderá ficar deturpada, influenciando no seu movimento.
O movimento, além de abranger atos motores, atinge também a dimensão social, como o direito de ir e vir. Para Bourdieu (1989), o espaço de relações é tão real quanto o espaço geográfico, ampliando a expansão do indivíduo, permitindo-lhe variar a rede de relações corporais e sociais. O deslocamento nos diferentes espaços proporcionará ao indivíduo cego estímulos da memória e da organização espaço-temporal a fim de propiciar maior interação com a sociedade, evitando o seu isolamento e permitindo movimentos do corpo. O movimento corporal, ao ser racionalizado, recebe grande influência do meio social. Le Boulch (1988: 51) refere-se ao movimento da seguinte forma:
“os movimentos expressivos do corpo, suas reações tônicas, assumem uma dimensão social na medida em que se revestem de um sentido pragmático ou simbólico para outrem.”
Telford & Sawrey (1988) apontam algumas dificuldades, que, além de privarem os cegos de importantes pistas sociais, provocam racionalizações dos movimentos para sua adaptação: a) impedimento direto à palavra impressa; b) restrição da mobilidade independente em ambientes não familiares; c) limitação de percepção de objetos grandes demais para serem apreendidos pelo tato. A racionalização do movimento corporal na pessoa cega é mais prejudicial porque dificulta o conhecimento da distância em relação a objetos ou ao tamanho do espaço. Segundo Fonseca (1995), isto ocorre porque o conhecimento do corpo é transformado em conhecimento do espaço, através da intuição e da conceituação lógica, já que, para o autor, a organização espaço-temporal está integrada com motricidade, e a relação com os objetos que ocupam determinado espaço se dá a partir do próprio corpo. O corpo necessita passar por várias experiências. Há necessidade de se trabalhar a construção de um sujeito social. Ao referir-se ao movimento como modo de expressão, Le Boulch (1988) nos diz que
“o movimento do homem se desenvolve em presença do olhar de outrem e assume dessa forma uma relação de significante e significado, em outras palavras, ele apenas existe continuado por um outro ‘ser expressivo’ que o acolhe e o interpreta.”
Daí a problemática do cego, que não percebe a presença dos olhares. O olhar facilita relações pessoais. Um simples olhar, mesmo a uma determinada distância, pode ser um código de aprovação ou reprovação de uma relação de amizade. A falta de um olhar que lhe transmita aceitação ou não pode influenciar a mobilidade do cego entre as pessoas.
Trabalhar na dimensão macro de proporcionar possibilidades de expressão do corpo no espaço parece ser um meio de evitar a mecanização, que conduz o corpo como um objeto ocupando determinado espaço sem possuir mobilidade. Essa ocupação de posição no espaço depende da orientação do corpo em relação a objetos e outros homens. Através do corpo, o indivíduo deve ocupar vários espaços, usando a locomoção e orientação. Merleau-Ponty (1994: 341) diz:
“a orientação no espaço não é um caráter contingente do objeto, é o meio pelo qual eu o reconheço e tenho consciência dele como de um objeto.”
O corpo é reconhecido na orientação espacial a partir da consciência corporal. Assim, como se tem consciência da existência de objetos, deve-se ter também consciência do próprio corpo. A ocupação de espaços dá-se através do estado ou da mobilidade de um corpo e se consolida pela manutenção dessa mobilidade ou desse estado. Daí a principal preocupação com a orientação e mobilidade do cego, que inicia-se na adequada estruturação espaço-temporal. Trata-se de um direito assegurado pela Constituição da República Federativa do Brasil (5 de outubro de 1988, art. 5º, parágrafo XV):
“É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.”
e pela Lei nº 7.853 de 24 de outubro de 1989, que diz no seu art. 1º:
“ficam estabelecidas normas gerais que asseguram o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiência, e sua efetiva integração social”.
Portanto, desenvolver a orientação e mobilidade do cego é dar-lhe condições de usufruir e exercer o direito de ir e vir com independência. Segundo Pereira (1990: 43), orientação “é um processo que o cego usa através de outros sentidos para o estabelecimento de suas posições em relação com todos os objetos significativos do seu meio circundante; e mobilidade é a capacidade de deslocamento do ponto em que se encontra o indivíduo para alcançar outra zona do meio circundante”.
A lei maior também protege o cidadão do cerceamento da liberdade de locomoção, concedendo-lhe habeas-corpus sempre que for impedido (Constituição Brasileira, 1988). Logo, criar barreiras que limitem ou impeçam a orientação e mobilidade de uma pessoa cega é desumano e inconstitucional.
A orientação e a mobilidade, apesar de serem de grande importância para a liberdade do cego, constituem-se áreas com insuficiência de estudos.
O interesse pelo assunto surgiu em 1929, com o uso de cães-guias, nos EUA. Após a II Guerra Mundial, a orientação foi sistematizada para atender ao número elevado de soldados que ficaram cegos, com o objetivo de torná‑los o mais independentes possível. Mais tarde, o médico Richard Hoover, preocupado com o aspecto funcional das bengalas de madeira, que possuíam muito peso, desenvolveu uma bengala mais leve e com técnica adequada, que passou a chamar-se bengala longa ou Hoover, funcionando como extensão do corpo. A bengala possui tanta importância que, no dia 15 de outubro, festeja-se o Dia Internacional da Bengala Branca (desde 1980). A data foi eleita na França, durante o encontro da União Mundial de Cegos (UMC), que vê na bengala o símbolo da integração na sociedade das pessoas cegas (Organización Nacional de Ciegos, 1938: 38).
A partir da eficiência comprovada desse material, organizou-se o primeiro curso de orientação e mobilidade na Universidade de Boston, e logo após, na Universidade Western Michigan, um outro voltado para adultos, mas relacionado com um programa para a criança e o adolescente cegos, já que eles podem apresentar, na área motora, um comportamento de inatividade, causando-lhe, conseqüentemente, sedentarismo, com possíveis prejuízos físicos, psicológicos e sociais. Os estudos relativos ao tema são recentes, começando a desenvolver-se há duas décadas, aproximadamente (Carol, 1961).
A orientação e a mobilidade, aplicadas na educação da criança e do adolescente cegos, são fruto de estudos e observações, como explica Mira y Lopes (1985: 103). Dentre seus achados, ele nos apresenta:
a) há semelhança de etapas de desenvolvimento entre a criança cega e a vidente;
b) os sentimentos de auto-estima e interação são relacionados com a independência física;
c) a capacidade de movimentar-se livremente leva o indivíduo a uma melhor participação e a um maior reconhecimento da sociedade.
Essas considerações sugerem que a diferença entre atitudes e comportamentos das pessoas cegas e videntes é tênue, e se estabelece de acordo com a história da relação de cada pessoa com seu ambiente. O que nos leva a acreditar ainda mais no trabalho de conscientização da sociedade na superação de uma das maiores perdas do cego: a adequação social, que poderá ser desenvolvida através de um consistente trabalho de orientação e mobilidade.
Esta adequação social deverá contribuir também na eliminação de estigmas relacionados à cegueira, que levam determinadas pessoas a pensar, por exemplo, que os cegos vivem na eterna escuridão. A relação simétrica entre visão e luz, e entre escuridão e cegueira, culturalmente condicionada, tem prejudicado as relações sociais para o cego, pois assim a cegueira ganha um significado simbólico negativo. Ver é ver a luz, ver é perceber. É um processo passivo, em que nossa rotina é atingida por luz. Segundo Chevalier & Gheerbrant (1994: 570), “a luz é o símbolo patrístico do mundo celeste e da eternidade, enquanto a escuridão é voltar ao indeterminado, onde se misturam pesadelos e monstros”, as “Idéias Negras" podemos encontrar no Novo Testamento mais um simbolismo negativo: “o cego de nascença” simboliza o povo que nunca tomou consciência de sua própria condição de oprimido, e assim não chegou a ver a real condição humana. A desorientação ou orientação inadequada prejudica a mobilidade da pessoa cega, fazendo com que a considerem desajeitada. Para Goffman (1988: 114), “a cegueira pode levar à impressão de falta de cuidado, por isso o cego deve fazer um esforço especial para aprender ou reaprender a propriedade motora”, ou seja, variadas formas de atividades e movimentos corporais. Desse modo, seu deslocamento é um constante aprendizado sobre o próprio corpo e suas relações com outros corpos no espaço.
Admilson Santos, MS, - Professor assistente da Universidade Federal da Bahia (UFBA) / Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
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